Entenda o esquema criminoso para desviar recursos públicos, segundo a Polícia Federal

Com informações do portal Marco Zero 


Para quem acompanha o noticiário de escândalos de desvio de dinheiro público envolvendo políticos e autoridades públicas, talvez estranhe uma grande empresa privada – dona de uma marca conhecida no mercado regional – como protagonista de uma acusação de fraude que desviou dezenas de milhões de reais destinados à merenda escolar e à alimentação de pessoas vulneráveis. 

Foi por essa razão que, no dia 13 de junho, a Justiça Federal determinou seis prisões, 36 mandados de busca e apreensão, além de decretar o sequestro patrimonial de quase R$ 96 milhões dos investigados.

Nesta série de três reportagens, com base no inquérito e na notícia-crime da Polícia Federal que se transformaram nos processos números 0802457-47.2022.4.05.8302 e 0801654-64.2022.4.05.8302, vamos detalhar os motivos que levaram a Natural da Vaca Alimentos a ser investigada pela suspeita de fraudar o Programa de Aquisição de Alimentos/Leite, do Governo Federal. Na decisão que determinou os mandados de prisão, a Justiça Federal considerou haver “prova hábil da materialidade dos crimes apontados e indícios suficientes de autoria”.

Apesar de o inquérito não correr sob segredo de Justiça, a imprensa local omitiu o nome da empresa, do industrial Paolo Avallone, sócio majoritário da empresa, e dos outros cinco homens presos – Francisco Garcia Filho, Domingos Sávio Neves Tavares, Geraldo Lobo Nogueira, Severino Pereira da Silva e José Elias Sarmento Filho. 

Na primeira operação policial do caso, em novembro de 2022, as notícias na mídia pernambucana indicavam que se tratava de uma investigação do programa governamental Leite para Todos, quando o foco era exclusivo sobre um contrato de interesse da Natural da Vaca.

Para entender a fraude, é preciso conhecer as regras do Programa de Aquisição de Alimentos/Leite (PAA/Leite). O site do Governo Federal explica que “governos estaduais contratam organizações da agricultura familiar para o recebimento, coleta, pasteurização, embalo e transporte do leite para os pontos de distribuição em locais pré-definidos”. O leite deve ser distribuído para “famílias em insegurança alimentar e nutricional” e merenda escolar.

Criado em 2003, no início do primeiro governo Lula, o PAA é mantido principalmente com verbas do Ministério do Desenvolvimento Social e contrapartida dos governos estaduais. A modalidade destinada à compra de leite é exclusiva dos nove estados do Nordeste e norte de Minas Gerais.

Voltemos à frase “governos estaduais contratam organizações da agricultura familiar”.

O eixo central da investigação da Polícia Federal é uma organização que deveria ter esse perfil, a Cooperativa dos Pecuaristas e Agricultores de Itaíba (Coopeagri). Foi com ela que, em 4 de agosto de 2014, o Governo de Pernambuco assinou um contrato de pouco mais de R$ 11 milhões para fornecimento de leite produzido pela agricultura familiar. O contrato foi assinado por José Aldo dos Santos, titular da Secretaria de Agricultura e Reforma Agrária, que contratou a cooperativa sem licitação, por meio de inexigibilidade. Na época, o governador era João Lyra Neto, pai da atual governadora Raquel Lyra, que assumiu após Eduardo Campos renunciar para ser candidato à Presidência da República.

Segundo as investigações da Polícia Federal, a Coopeagri só existe no papel. Na rua Padre Cícero, 12, onde deveria ser a sede da cooperativa funciona “a loja de miudezas pertencente à filha do presidente da entidade”, Elizabeth Pereira da Silva Neta de Carvalho. Da Coopeagri só havia uma placa na fachada do imóvel. Este, entretanto, foi apenas o primeiro dos muitos indícios descobertos pela equipe da delegada federal Bianca Alves de Oliveira.

O destino do dinheiro

A Polícia Federal começou a investigar a Coopeagri depois de receber um relatório do Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE) sobre os pagamentos feitos pela Secretaria de Desenvolvimento Agrário, nome da pasta durante o governo de Paulo Câmara. Em 2016, essa secretaria assinou um novo contrato com a Coopeagri, em valor semelhante ao anterior, de R$ 11,3 milhões. Nos quatro anos seguintes, 10 aditivos de prorrogação foram adicionados ao segundo contrato.

Durante as investigações, os policiais entenderam que não se tratava apenas de peculato ou improbidade administrativa.

Apesar de a soma dos contratos ser de R$ 22,4 milhões, desde 2014 o Governo de Pernambuco pagou R$ 95,3 milhões à Coopeagri – para exato R$ 95.347.574,81. De acordo com os levantamentos do TCE-PE e da Polícia Federal, a entidade de Itaíba embolsou dois terços do total dos recursos disponíveis para o programa nesse período.

A PF seguiu o rastro do dinheiro e está convencida de que esse montante não saiu dos cofres do estado de Pernambuco para aumentar a renda de famílias agricultoras que criam poucas cabeças de gado na zona rural, como determina a lei 10.696, que criou o PAA. Os recursos tiveram como destino a Natural da Vaca, é o que diz a polícia.

A Coopeagri seria a fachada para a indústria de laticínios. Praticamente todos os recursos depositados pelo Governo do Estado em uma conta da Caixa Econômica Federal da cooperativa eram transferidos ou sacados em dinheiro vivo por dois procuradores, Francisco Garcia Filho e Domingos Sávio Neves Tavares.

Garcia é empresário, dono da Planus Administração e Participações, fornecedora da Secretaria de Educação de Pernambuco. O segundo, Sávio, é funcionário da Planus. Os dois eram os únicos responsáveis pela gestão financeira da cooperativa, cujo presidente, Severino Pereira da Silva, atuava como “laranja”, sendo remunerado por isso.

Na próxima reportagem sobre o caso, vamos apresentar com mais detalhes os integrantes da organização criminosa e o papel de cada um nessa fraude milionária.

Calote e leite estragado

Ao se apropriar dos recursos do PAA, a Natural da Vaca precisava distribuir leite para os Fundos Municipais de Assistência Social de Belo Jardim, Sanharó e Tacaimbó, que, por sua vez, repassam o alimento para a merenda escolar e famílias em situação de vulnerabilidade social. As regras do edital estabeleciam que a entrega do leite deveria acontecer três vezes por semana. Se o padrão de qualidade não fosse o exigido, a substituição deveria ser feita no prazo de 48 horas.

O TCE-PE e a PF constataram que, para ampliar a margem de lucro, a Natural da Vaca pagou valores menores do que o estabelecido no contrato entre a Coopeagri e o governo. Dessa forma, a empresa teria garantido, só em 2020, perto de R$ 2 milhões livres de despesas. Muitas vezes, o pagamento nem foi realizado, como atesta o inquérito policial: “não pagamentos do leite in natura fornecido pelos pequenos produtores rurais locais inscritos no PRONAF, o que, somente em 2020, teria resultado no prejuízo de R$ 6.843.722,44”. O prejuízo, no caso, foi do Governo de Pernambuco. O lucro, indevido, para a Natural da Vaca.

Ao contrário do que determinava o contrato, a Secretaria de Desenvolvimento Agrário fazia os pagamentos sem receber mensalmente os laudos de análises físico-químicas e microbiológicas do leite distribuído. Isso levou os policiais a considerarem a possibilidade de outro crime em andamento, desta vez contra a saúde pública. Essa hipótese acabou confirmada com a apreensão dos celulares de funcionários da Natural da Vaca, repletos de trocas de mensagem mencionando a adição de produtos químicos e soro para que o alimento distribuído no programa rendesse mais. Com a quebra de sigilo telefônico e apreensão dos celulares dos acusados, em novembro de 2022, a PF encontrou mensagens como esta: “Se a gente aumentar o volume de soro, a gente consegue diminuir esse custo?”

A Polícia Federal fez então a coleta de amostra de leite nos fundos de assistência dos municípios e as enviou para análise. De acordo com o jornal O Estado de S. Paulo, único a publicar, no blog de Fausto Macedo, matéria mais detalhada sobre a operação policial de 13 de junho, as análises laboratoriais apontaram que o leite fornecido era impróprio para o consumo humano por conter aditivos químicos.

Marca conhecida no Nordeste

De um pequeno laticínio que, em 1998, produzia queijo coalho artesanalmente na fazenda Riacho do Mel, em Gravatá, no agreste de Pernambuco, a 86 quilômetros do Recife, a empresa mudou de nome para Natural da Vaca em 2002 e se tornou, segundo o próprio site da empresa, “líder de vendas de manteigas no Nordeste”.

Dois anos depois, expandiu a produção, terceirizando a fabricação em outras fazendas da região e também em Minas Gerais. Nessa época, iniciou a “ampliação de portfólio, incorporando queijo do reino, queijo prato, queijo mussarela, queijo ricota, queijo minas padrão, queijo ralado e manteiga”. Em 2004, sua fábrica começou a ser construída na própria Riacho do Mel.

O sucesso comercial, no entanto, não foi o suficiente para livrar a empresa de problemas fiscais e financeiros. Em 2012, ela já havia entrado em um processo de recuperação judicial. Por meio de consultas ao Diário Oficial de Pernambuco é possível perceber que, em 2018, a Nutrir Produtos Lácteos, nome original da empresa que depois viria a ser a Natural da Vaca com o mesmo CNPJ, permanecia com problemas, incluindo não pagando impostos estaduais.

O outro lado

A Marco Zero entrou em contato por telefone com todos os três escritórios de advocacia que defendem os seis homens que foram presos no dia 13 de janeiro – e libertados por força de habeas corpus – mas não obteve resposta.

Para o jornal Estado de S. Paulo, o advogado Bruno Frederico de Castro Lacerda, da equipe que representa Francisco Garcia Filho e Domingos Sávio Tavares, afirmou que “o convênio previa autorização para subcontratação, tendo em vista que nenhuma cooperativa possui estrutura própria para beneficiamento do leite”. Além disso ele acredita a prisão, no dia 13 de junho, foi “absolutamente desnecessária, especialmente quando os pacientes permaneceram à inteira disposição da autoridade policial, inclusive já tendo sido interrogados por ela recentemente, ocasião em que esclareceram inexistir qualquer ilicitude no cumprimento do contrato”, afirmou.

Entre os acusados cujos nomes foram mencionados neste texto, a Marco Zero não conseguiu identificar nem localizar o defensor de Severino Pereira da Silva, o presidente da cooperativa “de fachada”.

O espaço permanecerá aberto para o posicionamento dos defensores dos acusados, de quaisquer outros representantes ou mesmo das próprias pessoas investigadas pela PF nesse caso. O contato pode ser feito pelo e-mail marcozero@marcozero.org ou pelo contato de Whatsapp informado aos respectivos escritórios.

Categoria:Polícia

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